Língua como propriedade inapropriada de um povo
O livro O Monolinguismo do Outro foi apresentado, pela primeira vez, sob forma de colóquio na Louisiana, nos Estados Unidos, no ano de 1992. Nesta ocasião, Derrida, tratara da questão da linguagem como pensada pela desconstrução, como estranhamento, o que seria a introdução à sua reflexão. Nesta obra, como será melhor explicitado mais à frente, a questão do estrangeiro e sua acolhida na língua do outro. Vale aqui ressaltar que o pensamento de Derrida é associado à desconstrução, ou seja a tradução, onde ele enuncia às vezes claramente o que está em jogo na actividade para entender a língua do outro.
No Monolinguismo do Outro o paradoxo que se desdobra ao longo do texto, ter uma língua é não ter essa mesma língua, é fixado com um hipotético interlocutor, o também intelectual magrebino Abdelkebir Khatibi. O que garante a identidade é igualmente aquilo que abala ou compromete esta mesma identidade, de forma a pôr a relação consigo próprio em risco.
A obra discute o processo de formação de um imaginário linguístico - literário pelo escritor a partir da reflexão de sua aquisição da língua materna (o francês) e da necessidade de se entretraduzir que caracterizou esse aprendizado. Nesta autobiografia literária, a frase “Eu apenas tenho uma língua; e ela não é minha,” organiza as principais questões tratadas no texto e o discurso do livro remonta a uma memória sem uma identidade ficcional de pátria, vivida como memória. Desde o título da obra, aparece a referência a uma língua que o autor considera ao mesmo tempo como sua língua e como língua estrangeira. Porém, ao dizer que a única língua que possui não é a sua, não está reconhecer como estrangeira. É justamente nesse espaço intersticial da língua que se encontram as questões forjadas no livro.
A língua é de facto, o que possibilita a articulação de uma singularidade excepcional e universal que diz respeito a uma língua nossa, ao mesmo tempo em que nos impede de se apropriar dela. O monolinguismo deste outro intensifica o terror que já assombrou a desconstrução: nós recebemos a língua em uma escala muito mais ampla que a criamos. Esta relação para com a língua sempre partiu de nós mesmos, como a um endereço. A língua inapropriada é sempre a língua do outro.
Assim sendo, chegamos à questão que Jacques Derrida trata neste livro: de uma monolíngua, de uma língua por ele falada que lhe era proibida, já que não era sua, o francês. Além disso, ele é privado de toda outra língua (árabe, hebreu ou berbere. Ora ele é “jogado”, em uma tradução absoluta, uma tradução sem língua de partida. Para ele, apenas existiam línguas de chegada, e que não “chegavam” realmente já que sabiam de onde partiram. Essas meras chegadas instigavam um desejo de reconstruir, de restaurar, ou mesmo de inventar uma primeira língua.
No início da obra, o cenário de críticas que Jacques Derrida recebia é armado, através da figura de um interlocutor para com o qual se fixa uma aporia: ter uma língua é não ter essa mesma língua, paradoxo que se desdobra ao longo da obra.
Nesta obra autobiográfica, o filósofo reflecte sobre as relações que se entrelaçam entre língua, o contexto político-social, a cidadania e a identidade, no que se refere às consequências da política social francesa operada na Argélia.
A proposição contraditória apresentada (ser condenado a falar uma única língua e esta não ser a sua) suscita a seguinte questão: como é possível ser monolingue numa língua que não é sua? Mas, o ser falante só se constitui como tal a partir de uma língua que lhe é exterior e essa constituição se efectua pela inscrição num monolinguismo na língua que ele encontra no lugar do outro, nesta prótese da origem, subtítulo da obra. Este desejo de substituição e de preenchimento vago, está situada na tentativa de busca da origem, tentativa de saber o que preencher, algo que é reiterado pela escrita autobiográfica. Ao colocar em cena o desejo estrutural e irreprimível de busca desta origem, o discurso autobiográfico de Derrida se situa na borda, neste local não situável onde se dá o testemunho, onde surgem as relações entre nascimento, cultura e nacionalidade. Esta borda é atravessada por paixões da língua.
Porque é a beira do francês, unicamente, nem nele fora dele, na linha inencontrável da sua costa que, desde sempre, para sempre, eu me pergunto se se pode amar, fruir, suplicar, rebentar de dor ou muito simplesmente rebentar noutra língua ou sem mesmo nada dizer a ninguém, sem falar sequer.
É preciso pensar a localização do sujeito para com a língua, este acidente inevitável, visto que é língua que vem ao nosso encontro. Esta borda é uma linha que não se encontra, nem fora nem dentro, onde o testemunho do filósofo se desenrola. Os inúmeros trabalhos de Derrida trazem esta marca, a marca de um judeu-argelino que, infelizmente para ele, não falava o árabe, mas somente o francês, o qual, como afirma nesta obra, não era o seu idioma. Interessante questionar se é realmente possível que alguém tenha a posse de um idioma. Ou seria o idioma, aquilo que, como dito anteriormente, simplesmente nos atravessa e nos faz falar? É justamente, então, um indivíduo naturalizado francês que nunca teve outra cultura senão a Ocidental, à qual, de acordo com suas próprias palavras, jamais pertenceu de todo. Eis uma séria de ambiguidade, estar em um lugar descentrado que sempre se situou às suas margens, à sua borda.
Como a estrutura da língua também é uma repetição e está submissa à memória e ao testemunho, posto que nada pode acontecer realmente sem alguma memória e alguma promessa. Talvez seja por esta razão que a língua própria, determinada em seu uso, por alguma comunidade que a faz viver, resiste como o último valor de verdade, do sentido; o que explica a sacralização da língua enquanto suporte de uma cultura, povo ou nação que queira provar sua autenticidade. “Minha pátria, minha língua” frase empregada como defesa da manutenção de determinados padrões linguísticos. Evitar a descaracterização do idioma mantém-se como a possibilidade de salvação. Daí a íntima relação entre pensar a língua e pensar a identidade nacional, a noção de pertença e todos os seus conceitos correlatos, como cidadania e soberania nacional. O próprio filósofo sofreu a perturbação da identidade pela pertença língua comunitária,
o francês, bem como a privação da cidadania francesa por algum período. Seria então a cidadania o que responde pela inserção em algum grupo? Há um carácter estranho em estabelecer tal critério, pois não se escapa da pertença, assim como não se escapa da língua. Aliás, o filósofo nem mesmo busca dela escapar, o que busca é manter o olhar crítico sobre qualquer tentativa de substancializar o pensamento.
“O monolinguismo do outro seria em primeiro lugar esta soberania, esta lei vinda de algures, sem dúvida, mas seria também e em primeiro lugar a própria língua da Lei. E a Lei como Língua. A sua experiência seria aparentemente autónoma, porque tenho de a falar, a esta língua, e de a apropriar para a ouvir como se eu próprio ma desse; mas ela permanece necessariamente, assim o que no fundo a essência de toda a lei, heterônoma.”
Ter algo como próprio, ser dono de algo, é uma relação mercantil muito forte na cultura ocidental. Porém, seria verdadeiramente possível ser dono de sua língua? Essa é a grande discussão de O Monolinguismo do Outro e que pretendo aqui interpretar. A apropriação de uma língua é, por vezes, possível e necessária, interpretando a língua como um bem próprio que deve ser defendido, comum a um grupo, apta a identificar determinada comunidade linguística. Seria um elemento de certificação de pertença, seria a “uni-identidade” da língua, o carácter uno e comum, idêntico a todos os pertencentes deste grupo linguístico, que põe a língua como um duplo objecto de apropriação e identificação. No tocante às línguas, a assimilação da linguagem ainda é uma forma de ameaça as culturas, pois as formas mais extremas de violência política incluem o fantasma idiomático, como foi o caso vivido pelo filósofo na Argélia.
Sua autobiografia expõe uma situação singular, uma ligação particular ao francês, uma reflexão que alimenta a insuficiência da apropriação e identificação a este idioma,
e que o acompanham:
“ Eis a minha cultura, ela ensinou-me desastres em direcção aos quais uma invocação encantatória da língua materna precipitou os homens. A minha cultura foi imediatamente política. ‘ A minha língua materna’, dizem eles, falam eles, quanto a mim, cito-os e interrogo-os. Pergunto-lhes, na sua língua, evidentemente, para que me ouçam, porque isto é grave, se eles sabem bem o que dizem e de que falam. Sobretudo quando celebram tão levianamente a “fraternidade”, no fundo é o mesmo problema, os irmãos, a língua materna, etc.”
A descrição de tal situação não é meramente autobiográfica: ela serve como pressuposto para a desconstrução da língua como propriedade de um grupo. Embora o filósofo use o seu próprio nome para descrever a tensão vivida, há uma universalidade em seu discurso, dado que o monolinguismo que o faz falar de uma língua materna é sempre monolinguismo do outro – e tal outro é universal. A compreensão de seu monolinguismo como sendo do outro, visto a citação apresentada seria a revelação de uma cultura não como característica natural, mas como essência colonial, como uma lei heterônoma, uma autonomia que vem do outro, que chega até o indivíduo, o qual é obrigado a respeitá-la. Interpretar a língua como uma propriedade natural aquilo que nos integra numa comunidade, vai de encontro á proposta de Derrida, pois para ele, a língua é a lei que outros nos impuseram, e não o seio que sugamos desde infância, metaforicamente falamos, que recebemos abertamente. Como a relação entre a mãe e o bebé, que recebe a fala da mão como uma língua de chegada, sem algo que o pré-existia, é o posicionamento do monolinguismo do outro – que em primeiro momento é a mãe – pois serve como ponto de partida para a emergência do sujeito.
Não é raro ouvir discursos em que o idioma é a propriedade que permite incluir-nos em um grupo, ser nossa identificação, bem sempre como a presente ameaça a tal propriedade, por conta dos estrangeiros, das palavras fora de uso, enfim, que poderiam causar algum tipo de apagamento deste pólo identificador. Estando a língua sempre ameaçada, a necessidade de reafirmação de seu estatuto seria imprescindível, da mesma forma que a sua protecção e salvação, salvação essa que apenas a própria linguagem é apta a oferecer. No entanto, a ameaça está no por vir da língua: não se tem acesso a locutores futuros, não se pode controlar a interpretação, o que explicaria, talvez, os discursos nacionalistas autoritários de pertença a linguagem. A língua é sempre do outro, do colono, autoritária, pois nos ensinam a pensar de acordo com seus pressupostos, nos “colonizam”.
[…] independentemente do que queria ou faça, não pode entretecer com ela (língua própria) relações de propriedade ou de identidade naturais, nacionais, congenitais, ontológicas; porque não pode acreditar e dizer esta apropriação senão no decurso de um processo não natural de construções político-fantasmáticas; porque a língua não é o seu bem natural…
É através de tal carácter impróprio da língua que surgem tentativas de classificação linguística, por pureza ou riqueza, da mesma forma que alguns tentam impô-la a grupos ou contabilizam seus falantes. Para os que fazem isso, é preciso guardar a hegemonia da sua expressão. A língua é objecto de exigências políticas, pois não vemos ninguém renegado a sua língua nem tão pouco sua cultura; muito pelo contrário, o que é observado é que há um forte valor em “guardar” sua língua, dita materna, preservá-la como a um tesouro, interpretando que uma comunidade linguística é algo homogéneo e organizado. Ora, assim como o pressuposto do diálogo, que implica superficialmente uma equiparação entre os falantes, mas na verdade é uma imposição de uma das partes e aceitação imediata por parte da outra. O ideal de uma comunidade homogénea é falso, pois tal ideal está escondido na alienação ao que figura como lei, ao que vem de fora, ao que é colonizador. Neste momento, surge um importante questionamento: se tal monolinguismo é sempre do outro, sempre dissemelhanças que me cercam e que me compõe, como continuar a falar, se somos construídos por outros? Somos então alienados?
Para responder a tais questões, é necessário buscar uma dupla certeza: estamos realmente certos que não mais falamos a língua do outro, uma vez que é a mesma língua que falamos, por conta de seu carácter respectivo? As ilusões de pertença e domínio já foram “deixadas para trás”? Afinal:
Como é que se pode dizer, com uma certeza que se confunde consigo mesmo, que jamais se habitará a língua do outro, a outra língua, quando ela é a única língua que se fala, e que se fala na obstinação monolingue, de modo ciosamente e severamente idiomático, sem jamais por isso estar nela em sua casa.
Estas duas hipérboles apresentadas pelo tradutor, são, no fundo, a mesma coisa da dupla certeza que se busca possuir, duas certezas que além de uma experiência singular da língua são também uma forte resposta política às dinâmicas de relação para com a língua. Ele apresenta uma marca gramatical que indicará o carácter decisivo de sua reflexão: o uso do imperativo “[…] inventa pois na tua língua se fores capaz ou se quiseres ouvir a minha, inventa se podes ou queres dá-la a ouvir, a minha língua, como tua…” Tal imperativo exclama a invenção como tarefa do tradutor, ou qualquer um que esteja em posição de tradutor (como até mesmo um leitor), exclama o interesse na dinâmica de construção de conteúdo. Se […] “nada é intraduzível num sentido, mas num outro sentido tudo é intraduzível, a tradução é o outro nome do impossíve. O filósofo nos indica que o tempo todo há tradução, quando se lê há uma nova leitura e uma nova tradução, sendo portanto, inesgotável, sendo então tudo tradução, algo inatingível. Se a tradução é o outro nome do impossível, ao mesmo tempo estar na língua é tradução todo o tempo, só o impossível acontece: se só o possível ocorre, isto, que ocorre, na verdade, não é acontecimento, é apenas uma reprodução, continuação, condições de possibilidade. Logo o impossível acontece, não sendo este acontecimento uma mera confirmação do previamente esperado, perpetuação ou prolongamento do mesmo. Se tal afirmação pode talvez soar paradoxal, esta impossibilidade é reflectida na necessidade de invenção do idioma, a necessidade de uma referencialidade aberta, um evento de leitura que, ocorreu, estava em outro local. As várias dissemelhanças que atravessam o leitor, e que são acolhidas, não são características prévias do eu deste leitor: ora, toda leitura é então acontecimento, é invenção. Entretanto, é preciso que haja responsabilidade nesta invenção, não é algo meramente subjectivo como a interpretação possa vir a sugerir, sendo uma simples revolta contra a ordem do suposto sentido, é antes um interesse em desmontar as ilusões de identificação e aproximação, a busca das armadilhas do monolinguismo.
O monolinguismo de que falo fala uma língua de que está privado. Não é a sua, o francês. Porque está assim privado de toda e qualquer língua, e não tem outros recursos – nem o árabe, nem o berbere nem o hebreu, nem nenhuma das línguas que terão falado os antepassados – porque este monolingue é de certo modo afásico (talvez ele escreva porque é afásico), está lançado na tradução absoluta sem pólo de referência, sem língua originária, sem língua de partida. Não existem para ele senão línguas de chegada, se quiseres, mas línguas que, singular aventura, não chegam a chegar, uma vez que não sabem mais de onde partem, a partir de onde falam, e qual é o sentido do seu trajecto.
A citação acima explicita o resumo da obra, escrita pelo próprio filósofo no seu livro. Derrida aborda questão violência linguística através do paradoxo de ter só uma única língua e, ao mesmo tempo, esta língua que não ser sua. Quando o filósofo apresenta tal paradoxo, ele apresenta a pulsão da différence, lei que não obedece à lei da casa, pois não pode ser domesticada. As fronteiras que perpassam a desconstrução são apagadas e a ideia clássica da língua e subvertida, colocando a língua como vindo de um alhures, língua vinda, primeiramente, do outro. Para o filósofo, pensar o espectro, o que não é nem vivo nem morto, o fantasma, é compreender a ameaça do pensamento que não se prende à significados, à línguas que não se vinculam com seus sujeitos. Repete-se aqui uma citação já feita anteriormente:
Porque os fenómenos que me interessam são aqueles que vêm misturar estas fronteiras, aqueles que a ultrapassam deixando assim aparecer o seu artifício, isto é, as relações de força que aí se concentram e, na verdade, aí se capitalizam a perder de vista.
Este pensamento espectral denuncia o carácter violento da linguagem, denuncia o paradoxo indicador da pluralidade da língua, ao desejo de totalidade e de propriedade perpassa seus falantes. Derrida faz uso deste pensamento por conta da abertura para as dissemelhanças que o circundam, pelo desejo de apropriação que busca recuperar a língua, como uma pulsação genealógica desenfreada que por sua história e filiação. Visto que tal desejo de apropriação é sempre desejado, por conta da dificuldade em apropriar-se da língua, tal pulsação sempre se relaciona com um passado, com uma busca pela origem, desviada e assombrada pelas dissemelhanças. Para além da memória, nem sequer falo de um desvelamento último, mas do que, desde todo o sempre, permaneceu estranho à figura velada, à própria figura do véu. O filósofo teria velado a língua, embora ela não tivesse morrido. É estranho esse emprego do véu, que indica tanto uma presença quanto uma ausência : tal é o carácter do interdito – ele existe como desejo de presença, de uma voz viva que se velou na infância, e com terror debruçado na colonização francesa.
Este lugar de presença e ausência simultânea é a différance, que se aplica na língua como lei, lei de tradução. O filósofo é condenado à différence por conta da crueldade dos desejos de dissemelhança que o perpassam, localizados no seio da língua. No entanto, devemos prestar atenção na palavra “local”. Para o filósofo, a língua não se localiza, pois estamos sempre à borda, á margem. Nesta margem buscamos uma fantasia de estabilidade, que se apresenta como impossível: desejar o que é impossível faz da língua lócus de crueldade. “Mas, estás a ver, não é muito original e repeti-lo-ei ainda mais tarde, eu sempre pensei que a lei, tal como a língua, era louca – ela é em todo o caso o único lugar e a primeira condição da loucura. Habitar esta borda indica a não-domesticação, a crueldade da língua que é prometida, mas também ameaçada.
“[…] “ algures” deste outro absoluto com o qual foi obrigado a manter, para me guardar mas também para dele me resguardar, como de uma temível promessa, uma espécie de relação sem relação, resguardando-se uma da outra, na espera sem horizonte de uma língua que apenas sabe fazer-se esperar”
Tal ameaça é um risco de linguagem, do próprio pensamento espectral da desconstrução. Antes mesmo da linguagem há um antecedente, um “acto de fé” implicado na lógica do falante, igualmente na do ouvinte, que deve sustentar algum crédito de fé na palavra do sujeito. Como afirma o desconstrutor “só podemos acreditar no inacreditável”, no que não se presta à prova. O testemunho do que é acreditável é o que move toda a universalidade. Quando testemunhamos, atestamos com a fala um critério de verosimilhança, um “acto de fé” do que é demonstrado. A experiência linguística do testemunho revela a “divisão activa” da língua, reveladora dos desejos, das sujeições da universalidade. O habitar a borda se mostra como o lócus do testemunho, do engajamento na relação entre os sujeitos.
O que constitui o “terror” das línguas é justamente quando a relação entre os sujeitos da língua acontece a partir de uma presença impositiva, uma autoridade colonial que, na verdade, existe em todos os idiomas e em todas as culturas; pois todas as línguas e todas as culturas desejam se instituírem como verdadeiras, como uma promessa, como uma lei. O monolinguismo do outro é esse desejo de dominação, é essa língua do outro que me percorre, seria “esta soberania, esta lei vinda de algures, sem dúvida, mas seria também e em primeiro lugar a própria língua da lei. E a lei como língua.”
De acordo com o filósofo, as diversidades são constitutivas do indivíduo, afirmando a identidade do ser. Desta forma as identidades se fundam entre si, abalam-se entre si cada vez que são cruzadas com outras experiências de diversidades. Isto ocorre em cada instante da memória e da herança que recebemos. A lei da língua, da contaminação está aberta á herança, á hospitalidade e, portanto, á borda. Esta lei que interdita o pagamento da dívida do sujeito perante a língua, que traz a escritura e a disseminação. Para a desconstrução, a língua já é uma repressão da escritura – toda a fala, toda a apropriação como movimento recalcante da escritura é, desde sempre, um acto de violência que cria suas hierarquias bem como as estruturas que deseja preservar. A língua corresponderia a política de seu mestre, enquanto a escritura seria uma violência sem conteúdo, compromisso com a disseminação linguística: a língua teria um compromisso com seus próprios efeitos.
No Monolinguismo do Outro é descrito um amor pela promessa da língua, essa condição de promessa que pode ser perturbada, esse acontecimento sempre prometido e nunca realizado. Esse acontecimento sempre por vir, promessa sem conteúdo próprio, promessa que sustenta o desejo da mãe, da reconstituição da língua, da origem. Desejo de prévia, de uma primeira língua que seria a mãe, que nunca teve, de uma ante-primeira língua destinada a traduzir esta memória de restauração da língua materna. Essa memória na verdade, não é. Não é, posto que é rasto, espera sem horizonte de espera, é estrutura que possibilita o monolinguismo do outro.
Fazer da língua um bem natural, como propriedade, é esquecer todo o seu carácter de lei. Derrida rompe com um pressuposto natural da língua como seio, como morada, como mãe. Mesmo que pedirmos às línguas para serem um pólo de identificação, esse pedido não pode jamais satisfeito, visto que são propriedades sempre ameaçadas pela impropriedade da identificação que possam vir a ter. Fazer da língua uma propriedade natural é impor sua reapropriação, como se todo o defeito ameaçasse sua integridade; ela se transforma no elemento que deve ser salvo para poder salvar, proteger seus sujeitos. O carácter inapropriado da língua faz surgir as ameaças hegemónicas que algumas comunidades fazem, classificando-a como um tesouro no qual são guardados a história e a riqueza da língua. Esta alienação irredutível da língua a uma cultura é justamente o que revela a impossibilidade de apropriação da língua. Cada vez que alguém fala em nome da sua cultura ou invoca sua identidade cultural, quando pratica sua língua, esse alguém esquece – ou esconde – a sua alienação que atravessa seu discurso, alienação que figura como lei e que vem de um algures.
Este texto sempre crítico, indecifrável impede qualquer pretensão de propriedade da língua do outro, ao contrário obriga a enfrentar a multiplicidade das línguas.